segunda-feira, 18 de abril de 2016

Trechos de O Som e a Fúria - Faulkner

"Quando a sombra do caixilho apareceu na cortina era entre sete e oito horas, e portanto eu estava no tempo de novo, ouvindo o relógio. Era o relógio de meu avô, e quando o ganhei de meu pai ele disse Estou lhe dando o mausoléu de toda esperança e todo desejo; é extremamente provável que você o use para lograr o reducto absurdum de toda experiência humana, que será tão pouco adaptado às suas necessidades individuais quanto foi às dele e às do pai dele. Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque jamais se ganha batalha alguma, ele disse. Nenhuma batalha sequer é lutada. O campo revela ao homem apenas sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e néscios."

"você não está mentindo agora também não mas continua cego para o que está em você mesmo para aquela parte da verdade geral a sequência de eventos naturais com suas causas que ensombrecem o cenho de todo homem até mesmo de Benjy você não está pensando na finitude está imaginando uma apoteose em que um estado mental temporário se tornará simétrico acima da carne e cônscio tanto de si próprio quanto da carne ela não vai se livrar de você não estará nem mesmo morta (...) você não suporta a ideia de que algum dia ela não vai mais torturar você desse jeito agora estamos chegando ao ponto você pelo visto encara isso como apenas uma experiência que vai embranquecer seu cabelo do dia para a noite por assim dizer sem alterar sua aparência nem um pouco você não vai fazer sob essas condições será uma aposta e o mais estranho é que o homem que é concebido por acaso e que a cada respiração faz um lance de dados já viciados contra ele não vai encarar o lance final que ele sabe de antemão que ele terá de encarar sem apelar para expedientes que vão desde a violência até as chicanas mesquinhas que não enganam nem mesmo uma criança até que um dia movido pelo nojo ele arrisca tudo numa única cartada cega nenhum homem faz isso sob o impacto da primeira fúria do desespero ou remorso ou dor mas só quando se dá conta de que até mesmo o desespero ou remorso ou dor não é particularmente importante para o sinistro lançador de dados (...) é difícil acreditar que um amor ou uma dor é uma debênture comprada sem intenção e que vence querendo ou não e é recolhida sem aviso prévio para ser substituída pelo título que os deuses resolverem emitir no momento não você só vai fazer isso quando acreditar que nem mesmo ela era merecedora do desespero (...) nada mais no mundo não é desespero até que seja tempo nem mesmo o tempo até que foi"

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Trecho de Carta ao Pai

“Da sua poltrona você regia o mundo. Sua opinião era certa, todas as outras disparatadas, extravagantes, anormais. Tão grande era sua autoconfiança, que você não precisava de modo algum ser consequente, sem, no entanto deixar de ter razão. Podia também ser o caso de você não ter opinião alguma sobre um assunto, e, consequentemente, todas as opiniões possíveis relativas a ele precisavam ser sem exceção erradas. Você podia, por exemplo, xingar os tchecos, depois os alemães, depois os judeus, na verdade não sob este ou aquele aspecto, mas sob todos, e no final não sobrava mais ninguém além de você. Você assumia para mim o que há de enigmático em todos os tiranos, cujo direito está fundado, não no pensamento, mas na própria pessoa.”

Franz Kafka

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Salinger te odeia

Seria absurdo afirmar que a atração pela poesia da maior parte dos jovens é de muito excedida por sua atração pelos detalhes da vida do poeta, abundantes ou não, que poderiam ser aqui definidos, sem rigor técnico, como escabrosos. Mas esse é o tipo de ideia absurda que, um dia, eu talvez venha a testar cientificamente. De qualquer modo, tenho a mais absoluta certeza de que, se pedisse às sessenta tantãs (ou melhor, às sessenta e tantas moças) que compõem minhas duas turmas de Literatura para Publicação – a maioria no último ano da universidade, todas se formando em Língua Inglesa – para citarem uma linha, qualquer linha, do ‘Ozymandias’, ou pelo menos para dizerem do que se trata o poema, duvido que dez delas pudessem fazer uma coisa ou outra; mas apostaria minhas recém-plantadas tulipas que umas cinquenta seriam capazes de me dizer que Shelley era inteiramente favorável ao amor livre, que uma de suas mulheres escreveu Frankenstein e que a outra se suicidou por afogamento. (Trecho de Seymour, Uma Introdução)
Jerome David Salinger detestava o culto ao escritor. Embora leitores sejam apaixonados por ficção, seres humanos possuem um fetiche incorrigível pela realidade. Como se a própria linguagem não bastasse, buscamos iluminar a arte com a biografia do artista. Opção altamente discutível – mas tentadora, admito. A verdade é que não passamos de bisbilhoteiros, mas desculpamos nossa curiosidade alegando que temos motivos nobres.

Depois de publicar O Apanhador no Campo de Centeio, em 1951, seu livro de maior sucesso, Salinger se tornou um recluso. Nada de entrevistas ou aparições públicas. Depois de 1964, ele não publicou mais nada e passou o resto da vida, até morrer em 2010, escrevendo só para si mesmo. Frescura? Transtorno de personalidade esquiva? Vaidade? Ciúmes de dividir o xixi que supostamente bebia? São tantas as especulações! Ele não queria que seus livros tivessem ilustração, foto do autor, biografia, listagem de outras obras e ou cartazes de lançamento. Mas até mesmo nisso alguns enxergam algum tipo de marketing, quando ele queria que seus livros fossem lidos pelo que são, apenas isso.
Juro por Deus que, se eu fosse um pianista, ou um autor, ou coisa que o valha, e todos aqueles bobalhões me achassem fabuloso, ia ter raiva de viver. Não ia querer nem que me aplaudissem. As pessoas sempre batem palmas pelas coisas erradas. Se eu fosse pianista, ia tocar dentro de um armário. Seja como for, na hora que ele acabou e todo mundo estava aplaudindo como uns alucinados, o safado do Ernie deu uma volta no banquinho e fez uma reverência fingida, bancando o humilde. Como se, além de ser um pianista bom pra burro, fosse também um sujeito um bocado humilde. Era um troço cretino pra diabo aquilo dele ser metido a besta e tudo. Maes, de um jeito meio engraçado, senti pena dele quando acabou a música. Acho que ele nem sabe mais quando está tocando bem ou não. A culpa não é toda dele. Em parte, os culpados são aqueles bobalhões que batem palmas como uns alucinados: eles são capazes de enganar qualquer um, se tiverem uma chance. (Trecho de O Apanhador no Campo de Centeio)
Infelizmente o Apanhador não é famoso apenas por méritos literários.  Acusam-no de terem “inspirado psicopatas”, outras vezes o elogiam como se fosse um tipo de “manual do jovem desajustado” e até mesmo caem naquele velho e óbvio lugar comum: “critica a burguesia”. Não, ele não critica a burguesia.

O-Apanhador-no-Campo-de-CenteioO Apanhador no Campo de Centeio é uma narrativa bastante coloquial e aparentemente prolixa da perambulação do protagonista em Nova York por alguns dias, adiando a volta para a casa e o confronto com a família, já que foi expulso da escola. Mas não é um livro pra adolescentes, a menos que o adolescente em questão seja um leitor maduro. Holden Calfield é um garoto de dezessete anos, imaturo em diversos aspectos e é o narrador da história, mas ser um adolescente problemático não é pré-requisito para apreciar o livro. A aparente leveza e espontaneidade da narrativa é fruto de muito trabalho. Diferente dos beats, que em Seymour, Uma Introdução, Salinger critica por – entre outras coisas - serem “assassinos do zen budismo”, o autor transforma o turbilhão de sensibilidade imberbe do protagonista em literatura do mais alto nível. Há milhares de pensamentos incríveis atravessando a mente de Holden, mas ele não se sente disposto o suficiente pra explicar, nem o péssimo vocabulário dele poderia. Mas estão sugeridos por toda a história, e é preciso muita maturidade e competência cognitiva da parte do leitor para sejam assimilados.

Especular a vida do autor não irá nos dar um conhecimento mais amplo da sua obra, mas agrada muito a Miss Spiritual Tramp of 1948 que existe dentro de cada um de nós. O mais engraçado – a ironia do troço todo – é que Holden diz que livro bom é aquele que, quando você termina, sente vontade de ligar pro autor e poder conversar horas a fio com ele. Salinger disse para todos lhe telefonarem e depois cancelou a linha.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Flexibilidade moral


Wuthering Heights, ou como foi traduzido no Brasil, O morro dos Ventos Uivantes, é o único romance escrito por Emily Brontë. Com uma prosa sarcástica e repleta de diálogos – digamos -, pouco adequados para uma moça solteira e luterana do século XIX, ela nos leva para um lugar isolado do resto do mundo; rústico, original e fustigado pelo vento. O poeta Dante Gabriel Rossetti afirmou que a ação se passa no inferno, só que os lugares e as pessoas têm nomes ingleses. A definição faz justiça. Charlotte Brontë, numa tentativa de explicar aos leitores da época toda a estranheza e originalidade do gênio da irmã, escreveu:
Para todas essas pessoas, O Wuthering Heights deve parecer um livro rude e esquisito. As bravias charnecas do norte da Inglaterra não podem ter, para elas, qualquer interesse; a linguagem, as maneiras, as próprias moradas e os usos domésticos dos poucos habitantes dessas regiões devem ser, para tais leitores, em grande parte ininteligíveis e — quando inteligíveis — repulsivos. Homens e mulheres que, talvez por natureza muito calmos, com sentimentos moderados e pouco marcados, tenham sido desde o berço ensinados a observar a mais completa temperança de maneiras e o mais perfeito policiamento de linguagem sem dúvida não saberão como encarar o linguajar forte, as paixões brutalmente manifestadas, as aversões não contidas e as obstinadas parcialidades dos camponeses iletrados e dos fidalgos não refinados que vivem nessa região, e que se criaram sem outros ensinamentos e outras contenções que os de mentores tão rudes quanto eles próprios.
Considerado hoje uma obra prima da literatura inglesa, foi publicado pela primeira vez em 1847 sob o pseudônimo masculino de Ellis Bell, e provocou reações controversas com sua narrativa crua e minuciosa dos mais diversos tipos de violência mental e física. Criança, mulher, cachorro: apanha todo mundo. E quem não apanha é mandado pro inferno. Aliás, acho que não tem uma página sem que o diabo não seja invocado ao menos uma vez. Talvez O Morro dos Ventos Uivantes seja meu livro favorito. Apesar de ver inúmeras críticas a respeito da morbidade da história, o livro me faz bastante feliz. Um exemplar dele está sempre na cabeceira da minha cama, e diria que ele me traz até uma certa paz de espírito. É minha bíblia (eufemismo para obsessão). Admito que parece contraditório dizer isso, já que não sou nenhuma psicopata. Mas por trás de todo o turbilhão de angústias, vingança, egoísmo, praga e maldições, se o leitor descobrir o que sobrevive a todo esse choro e ranger de dentes, ficará encantado!
por Kate Beaton

Tudo começa quando o Sr. Lockwood aluga a Granja Thrushcross, propriedade vizinha a Wuthering Heights, em busca de isolamento. Quando ele resolve se apresentar a Heahtcliff, dono das duas propriedades, se depara com um homem cuja misantropia é ainda maior que a sua. A curiosidade pelo vizinho o leva a interrogar a governanta, Nelly Dean, que conhece Heathcliff desde a infância. No final do século XVIII, em uma área rural da Inglaterra, o patriarca da família Earnshaw retorna de uma viagem trazendo consigo um pequeno órfão de origem obscura, que todos pensam ser um cigano, e a qual dão o nome de Heathcliff. A afeição que o Sr. Earnshaw tem pelo menino deixa Hindley, seu filho legítimo, profundamente enciumado enquanto a caçula, Catherine, desenvolve com ele uma grande cumplicidade. Quando o Sr. e a Sra. Earnshaw morrem, Hindley sujeita Heathcliff a várias humilhações; e ele, que vinha até então sendo tratado como um filho legítimo, se vê numa situação pior que a dos empregados. Mas o golpe mais duro vem por parte de sua adorada: Catherine decide se casar com Edgar Linton, um rico jovem das redondezas. Heathcliff então foge. E retorna anos depois com uma grande fortuna e uma disposição demoníaca para se vingar de todos.


O Morro dos Ventos Uivantes é de uma obra de grandiosidade solitária, surgida de uma experiência de vida que causa perplexidade. Emily Brontë é a mais genial dentre as irmãs Brontë, também escritoras. Ficava doente de saudade longe de casa e era quase uma reclusa, só saía para ir à igreja e passear solitária pelas charnecas, paisagem pelo qual era apaixonada e na qual ela situou sua narrativa. O seu profundo conhecimento da alma humana parece ter nascido de uma intuição quase selvagem. Ela desenvolveu uma Gnose original, uma religião inteiramente sua. Por toda a história ela se recusa unir os dois universos do seu romance: razão, natureza e sociedade constituem um mundo; o sobrenatural, transcendente e fantasmagórico é outro. O livro apresenta fatos sobrenaturais com uma evidência perturbadora. Enquanto o leitor fica num impasse, travando uma verdadeira batalha entre esses dois universos, Emily, com sua narrativa esplêndida, parece rir:

(Heathcliff) Subiu na cama e abriu a gelosia, explodindo, ao fazê-lo, numa incontrolável torrente de lágrimas. – Entre! Entre! soluçou. – Cathy, entre! Oh, venha… venha… uma vez mais! Oh, minha adorada! Escute-me agora, Catherine, finalmente! – o espectro mostrou um capricho bem digno dos espectros: não deu sinais de vidas; mas a neve e o vento entraram à vontade, chegando até onde eu estava e apagando a luz.

A história desafia qualquer ser humano com o mínimo senso de civilidade. Civilidade que muitas das vezes usamos como desculpa para explicar os sentimentos insossos e sem convicção que predominam. A propriedade de Wuthering Heights, no topo do morro, sujeita as mais fortes tempestades, é a metáfora estética para definir sentimentos não domesticáveis de uma classe praticamente extinta de seres humanos. É uma tarefa ingrata julgar seus personagens, dificilmente teríamos a profundidade emocional necessária. O que nos resta é esquecer de tudo que consideramos como correto, ético e moral, e simplesmente absorver que ali, naquela situação, forças maiores estão envolvidas. Sentimentos que nos arrebentariam por dentro.

E você supõe que ela me haja quase esquecido? Oh, Nelly! Sabe muito bem que isso não é verdade! Sabe, tão bem quanto eu, que por um pensamento que ela gasta com Linton, gasta mil comigo! No período mais desgraçado da minha vida assaltava-me esse medo: medo que me acompanhou quando vim para cá, no verão passado. Agora, só a palavra dela pode me fazer admitir de novo essa horrorosa ideia. E então Linton já não representaria mais nada, nem Hindley, nem todos os sonhos que eu já sonhei. Duas únicas palavras seriam a suma do meu futuro: morte e inferno. A vida, depois de a perder, seria o inferno. E, assim mesmo, andei tão louco que cheguei a crer que ela dava mais valor ao amor de Linton do que ao meu. Mesmo que ele a amasse com todas as forças do seu mesquinho corpo, nem em oitenta anos a amaria tanto quanto eu a amo em um dia. E Catherine tem um coração tão profundo quanto o meu; seria mais fácil o mar caber todo nessa vasilha do que todo o amor dela ser monopolizado por ele! Ora! Ela mal lhe quer um pouco mais do que a seu cão, ou a seu cavalo! Não está na mão dele ser amado como eu sou; e como poderia ela amar o que ele não possui?

Não é apropriado considerar o amor entre Heathcliff e Catherine doentio. Mais uma vez: precisamos nos abster de todos os conceitos que temos, para compreender que o que se passa entre eles é grandioso demais! É curioso como não há contato carnal entre os dois. Acho que o mais chocante na época que o livro foi publicado era pensar que, de certa maneira, eles eram irmãos. Acho que eles não estavam muito preocupados com a natureza dos seus sentimentos. Era tão sublime! Quando crianças, ficavam brincando pela charneca quando conseguiam fugir dos castigos de Hindley e isso era o sinônimo de felicidade para eles. Selvagens, livres. Não só das amarras do mundo físico, mas de qualquer ambição vaidosa. Há um trecho que ilustra bem o fato de como a ideia de ter inveja de Catherine era até mesmo incompreensível para Heathcliff:

Edgar e a irmã eram donos de toda a sala. Como é que não estariam felizes? Se fôssemos nós, pensaríamos que estávamos no céu! E agora diga: – que é que você pensa que aqueles meninos bonzinhos estavam fazendo? Isabella – creio que tem onze anos, é um ano mais moça que Cathy – estava estirada no chão, no fundo da sala, gritando como se um bando de bruxas a alfinetasse com agulhas em brasa. E Edgar, de pé, junto ao fogão, chorava em silêncio; no meio da mesa estava um cachorrinho, balançando a pata e ganindo. E, pelas acusações que os dois faziam entre si, compreendemos que tinham quase despedaçado o bichinho. Idiotas! Assim é que se divertiam! Brigando para ver quem segurava aquela trouxa de pêlo quente e, depois da briga, choravam porque nenhum dos dois queria mais pegar o cão. Cathy e eu caímos na gargalhada, vendo aqueles dois enjoados; davam até desprezo. Você já me apanhou algum dia cobiçando alguma coisa que Catherine desejasse? Ou acha que nos encontraria sozinhos, brincando de chorar, soluçar e rolar no chão, cada qual a um lado da sala? Olhe, nem por mil libras eu trocaria minha situação aqui pela de Edgar Linton, em Thrushcross Grange. Nem que me deixassem atirar Joseph da cumeeira abaixo ou pintar a porta da rua com o sangue de Hindley!

A violência que transborda de algumas páginas é repulsiva. Facada em mulher, maus tratos contra crianças… Talvez o aspecto mais sombrio de toda a obra seja a crueldade contra animais. Emily Brontë tinha uma relação muito diferente com eles. É conhecido que um Mastiff de nome Keeper foi seu fiel companheiro. Outros animais da família eram mencionados por cartas trocadas com as irmãs e é evidente que eram bastante considerados. Por isso mesmo, é surreal a neutralidade com que ela narra o enforcamento de um cachorro na história. Grande conhecimento ela tinha do lado escuro do vínculo entre homem e cão, que é, muitas das vezes, usado como bode expiatório. O que mais choca é saber que o cão enforcado, ao sobreviver, permanece fiel a dona que o abandonou. Lealdade para com o autor dos abusos é uma poderosa dinâmica em situações de violência doméstica. O cão em Wuthering Heights nem sempre é maltratado de maneira consciente, há também o desdém, ou a ingênua -mas não menos grotesca - crueldade que crianças podem cometer contra animais. O comportamento abusivo é igualmente exercido sobre mulheres e crianças, e Emily retrata essas situações com a mesma naturalidade que uma pessoa completamente desprovida de aversão a tais coisas faria. Sentimos a boca amargar, mas é fascinante mergulhar nas complexas relações de opressão e servilismo que caracterizam o abuso de poder.

É necessária uma grande dose de flexibilidade moral para nos aproximarmos de Heathcliff e Catherine e deixar que suas qualidades, que são tão grandes quanto seus defeitos, os tornem pessoas admiráveis aos nossos olhos. Gosto sobretudo de Catherine, que a despeito de todo o seu egoísmo e gênio manipulador, era uma pessoa com afetos sinceros e duráveis. Não havia nada de volúvel e leviano nela. Sinceramente acredito que quando se casou com Edgar realmente acreditava que isso permitiria que sua relação com Heathcliff continuasse a ser a mesma de sempre. Apesar de toda a tirania de Hindley e os castigos infligidos por Joseph, o caseiro detestável e hipócrita, as duas crianças nunca se lamentaram muito conquanto tivessem um ao outro. Eram tão felizes naquela propriedade desgraçada que um dia Catherine sonhou que estava no paraíso, mas não era feliz, e chorou até que os anjos a jogassem de volta ao Morro. Heathcliff é um personagem tão assombroso e implacável que quase chegamos a acreditar que não é filho de cigano, mas do demônio. O único sentimento humano que revela não é seu amor por Catherine, porque como ele mesmo diz, ela é sua própria alma. O elo que verdadeiramente liga Heathcliff à humanidade é sua inconfessada preocupação com Hareton – o filho de Hindley que ele arruinou para se vingar do pai – e uma insinuada estima por Nelly.


A sabedoria de Emily Brontë é ainda mais incrível quando ela leva a filha de Catherine e o filho de Heathcliff a discutirem sobre como deveria ser o Paraíso. Acho que essa é a chave para imergir na complexidade da obra, na tempestade de sentimentos contraditórios, na felicidade descoberta nos lugares mais improváveis. Ninguém imagina ser infeliz no Paraíso.

Um dia, porém, estivemos a ponto de brigar. Ele dizia que a maneira mais agradável de passar um dia quente de julho era ficar deitado, desde a manhã até a noite, sobre um talude de urzes em meio da charneca, a escutar, como num sonho, o zumbir das abelhas sobre as flores, o canto das cotovias que planam bem alto acima de nossas cabeças e a contemplar o céu azul e o sol a esplender, límpido e refulgente. Tal era a sua mais perfeita ideia da felicidade celeste. A minha era balançar-me numa árvore de verde folhagem murmurante, quando sopra um vento de oeste e belas nuvens brancas deslizam rapidamente pelo espaço. E não apenas quando cotovias, mas também tordos, melros, pintarroxos e cucos esparzem por todos os lados sua música; quando se avista a charneca de longe, cortada de frescos vales mergulhados na sombra; e, bem perto, grandes outeiros cobertos de grama alta, ondulando como vagas ao sopro da brisa; bosques e água tumultuosa, o mundo inteiro em movimento e fremente de alegria. Ele gostaria de ver tudo repousar em um êxtase de paz. Eu de ver tudo cintilar e dançar num glorioso jubileu. Disse que seu paraíso seria semimorto. Ele dizia que o meu seria ébrio. Disse que dormiria no dele. Ele dizia que não poderia respirar no meu. A discussão começava a se tornar mordaz. Afinal, convimos que faríamos a experiência dos dois, logo que o tempo fosse favorável. Depois nos beijamos e voltamos a ser amigos.

Heathcliff rejeita todas as tentativas de Nelly de fazê-lo confessar seus pecados. O Paraíso que Nelly acreditava, como cristã, não comportaria Heathcliff. Ela nunca nem questionou que isso, de forma alguma, seria um desejo dele. Ele afirma pra ela que já encontrou o seu próprio céu. Da sensata governanta é feita a pergunta mais heterodoxa de toda a história. Ao ver Catherine morrer em paz, depois da vida agitada e impaciente que levou, ela pergunta ao Sr. Lockwood se ele acredita que pessoas como Catherine sejam felizes no “outro mundo”, e que daria tudo para sabe-lo. Ela chega a conclusão de que só num momento de fria reflexão a resposta seria não.


Defendo Heathcliff e Catherine, me comovo com suas motivações e perdoo cada uma de suas atrocidades. Espero que o texto tenha lançado uma luz sobre as trevas que cobriram o coração deles. Desde sempre, a única coisa que desejavam, eram ser selvagens e livres. Liberdade que as convenções vitorianas não permitiram. Convenções que são defendidas, geralmente, por gente boazinha, leviana, descuidada, que não faz o mal de propósito, mas simplesmente se apropria de valores abstratos na falta de causas superiores e sentimentos sinceros.

O leitor estúpido: Mary Bennet em Orgulho e Preconceito

- Diz preferir ler a jogar?- disse Mr. Hust – Que coisa estranha.
- Miss Elizabeth Bennet – disse Miss Bingley – tem desprezo pelas cartas. Ela é uma grande leitora, e, para além disso, nada lhe dá prazer.
- Não mereço nem tal louvor nem tal censura – exclamou Elizabeth -; não sou uma grande leitora, e são muitas coisas que me dão prazer.
O leitor estúpido é como qualquer outra pessoa estúpida. A diferença é que ele pensa que livros necessariamente o salvam de tal condição.

Em Orgulho e Preconceito, Jane Austen retrata dois tipos de leitores. Primeiro temos a heroína da história, Elizabeth Bennet. Sagaz, espirituosa e irônica, Lizzie (como irei chamá-la daqui pra frente) gosta muito de ler. Mas ela, como pessoa inteligente que é, reconhece que não há sentido em ficar imersa nos livros todo o tempo, e por isso também vai a bailes, fofoca com a irmã e a melhor amiga, entre outros passatempos inofensivos, que dificilmente diminuirão seu intelecto.

Lizzie poderia ler mais, citar autores importantes a cada conversa cotidiana e deixar de lado todas as “frivolidades”. No entanto, ela prefere viver sua vida e ter sua própria carga de sabedoria, que é bagagem extremamente necessária para aventurarmos em qualquer leitura e absorver seu conteúdo. É uma leitora consciente e esperta, capaz de interpretar textos através de seu filtro pessoal. Ela é tão inteligente que até gosta de ler livros! Nunca o contrário. Já o segundo caso…
- Qual a tua opinião, Mary? Tu, que és jovem sensata e profunda, que lês bons livros e deles extrais ensinamentos. Mary quis dizer algo de relevante, mas não sabia como.
Mary Bennet é tudo o que Lizzie não é. Mary lê vorazmente. Desdenha dos interesses das irmãs, das futilidades da vida e de qualquer conversa sobre banalidades.  Ela acredita que livros são uma fonte inesgotável de conhecimento.
- Longe de mim menosprezar tais prazeres, minha querida irmã; são os que sem dúvida se enquadram mais naturalmente nos temperamentos femininos. Mas confesso que não me seduzem. Prefiro infinitamente mais um bom livro.
 Na personagem de Mary, Jane Austen faz uma crítica deliciosa e bem humorada a respeito da leitura e da receptividade da mesma por parte do leitor. Ela demonstra que não há qualquer benefício no apreço demasiadamente excessivo que Mary tem pelo hábito da leitura. Quando não está lendo e fazendo reflexões “profundas” a respeito dos livros, Mary também se dedica a outras atividades “superiores”, como tocar piano.
A atuação de Elizabeth foi agradável, embora de modo algum excelente. Depois de uma canção ou duas, e antes que pudesse responder à insistência das várias pessoas para ela cantar de novo, o lugar ao piano foi avidamente ocupado pela sua irmã Mary, que, em consequência da sua fealdade, se aplicara na árdua aquisição de conhecimentos e dotes, vivendo na ânsia constante de os exibir. Mary não tinha nem talento nem gosto; e, embora a vaidade lhe tivesse dado aplicação, emprestara-lhe também um tal ar de superioridade e afetação nos modos que por si só prejudicariam um grau de perfeição mais elevado que o que ela atingira; Elizabeth, que não tocava tanto como a irmã, prendera muito mais a atenção.
 Seja tocando piano ou dando lições moralizantes, Mary falha em perceber que todos os seusesforços não a tornaram tão sapiente quanto se imagina. A leitura exagerada e o desprezo por atividades menos eruditas não a dotaram do senso crítico que só podemos adquirir através da convivência com outros seres humanos.

Aliás, livros são, geralmente, sobre SPOILER eles (explicando aqui, para o caso de um desses leitores fervorosos ainda não terem atentado para o fato). Isolada em sua ilha de erudição, Mary, ao contrário, aumenta cada vez mais sua estagnação intelectual. O que ela compreende de suas leituras, quando compreende, não acrescenta nada para si mesma. Está tão convencida de sua superioridade que até mesmo as reflexões originais que faz só servem para serem aplicadas aos outros. Nunca passou pela sua mente aguçada que, assim como todos os meros e fúteis mortais aos quais dá lições, ela também carece, muitas das vezes, de uma dose nada comedida de autocrítica.
- O orgulho – observou Mary, que se vangloriava da solidez das suas reflexões – é um defeito muito vulgar, creio eu. Depois de tudo o que li, estou deveras convencida da sua vulgaridade, que a natureza humana lhe é particularmente propensa e que são raros aqueles entre nós que não nutrem um sentimento de condescendência própria baseado numa ou outra qualidade, real ou imaginária. Vaidade e orgulho são coisas diferentes, embora as palavras sejam frequentemente usadas como sinônimos. Pode-se sentir orgulho sem ser vaidoso. O orgulho diz respeito mais à opinião que temos de nós próprios, enquanto a vaidade ao que pretendemos que os outros pensem de nós.
 Ah, como seria glorioso se Mary Bennet falasse umas abobrinhas de vez em quando! Jane Austen, nos tempos de hoje, recomendaria mais balada e menos biblioteca pra essa moça.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O que vestir no Apocalipse Zumbi



Como uma grande fanática por zumbis, sempre me pego pensando “o que usar no Apocalipse Zumbi?”. Que ele vai acontecer é fato. Portanto, sempre que gosto muito de um vestido dou um jeitinho de conservar ele para essa ocasião tão especial, não fico banalizando ele no dia-a-dia. Mas a epidemia irá se alastrar rapidamente e, sem que você se dê conta, um morto-vivo estará se arrastando perto da sua casa e destruindo seu lindo gramado. Você poderia se preparar para isso em apenas alguns minutos?

Creio que vocês passem pela mesma crise que eu, daí resolvi sugerir uns looks para você se inspirar e viver esse momento tão ansiado com muito glamour, sem que para isso tome muito do seu tempo.

O caos irá se instaurar e você tem que ter em mente que será o único elo da humanidade com a arte, a beleza e a sofisticação. Precisa se portar como tal, se vestir como tal, não pode desleixar e ficar toda miserável. O Apocalipse Zumbi não é muito diferente de todas as outras desgraças que acontecem com a humanidade, como, por exemplo, uma Louis Vuitton fake. Você vai sobreviver, e linda!


1º look
Como você  pode observar, sugeri um vestidinho leve, de cor clara, para que você possa aproveitar um belo dia de verão ao ar livre, longe da cidade e dos tumultos, e fazer um piquenique! Lembre-se sempre de usar sapatos confortáveis, um chapéu para se proteger do sol  (boné também protege, mas se eu topar com você usando uma coisa dessas, finjo que não te conheço!) e um óculos. Para ficar graciosa, basta apenas que você use uma jóia simples, nada chamativo e uma mochila, para guardar seus pertences. Não recomendo qualquer outro modelo de bolsa, porque você corre e elas ficam se balançando descontroladamente ao lado do corpo, ok? E se ver um zumbi ou um tarado, corra! Você não vai querer se meter num combate corpo-a-corpo com qualquer um deles, porque eles fedem. Os dois.



2º look
Olha, não é fácil ser chique quando a humanidade não está nem aí para esses valores mais elevados e fica comendo qualquer coisa que caiu no chão, mas você estará toda linda porque é forte. Aqui está outro exemplo de um look simples, leve e confortável para você vivenciar aquele friozinho na barriga que só os zumbis podem nos causar! Observe que neste também há uma sombrinha, certo? De todas as armas que você pode usar, a sombrinha ou guarda-chuva será a mais útil. Primeiro porque é bonita, segundo porque é prática. Realmente aprecio o estrago físico que uma sombrinha pode causar, e tem a vantagem de não ser barulhenta (exceto pelos gritos do infeliz que está tendo seu intestino perfurado). É uma arma que te protege da chuva ou do sol, os piores inimigos, né.




3º look
Aqui vai um look super prático para você usar se tiver bicicleta! Todos sabem que o melhor veículo para um Apocalipse Zumbi é a bicicleta: não precisa de combustível, não vai ficar presa em rodovias, é relativamente rápida e mais flexível que um carro. Além do mais, você pode passear pelos campos e colher algumas flores, apreciar a natureza, ouvir os pássaros… Se o Apocalipse Zumbi tem um benefício, é o de ocupar o homem o suficiente para que ele deixe a natureza em paz. Não se esqueça de prender os cabelos com uma tiara!


4º look
Aqui está um look fresquinho para você que mora em locais muito quentes ou no litoral. Você precisa ter em mente que suor é coisa para o proletariado, mas não pode usar pouca roupa ou vai parecer uma meretriz. A solução é vestir um top fofo e um short de corte clássico. Só leve na mochila o que for realmente necessário: alimentos não perecíveis, kit de primeiros socorros, facas, isqueiro, lanterna, seus livros favoritos e uns testes da Capricho para que não perder a referência da pessoa que você é! Um Apocalipse Zumbi pode ser muito estressante.

5º look
O quinto e último look é para aqueles dias mais frios. Para você, que é uma lady, sabe que esse papo de que no inverno as pessoas ficam mais elegantes é coisa de pobre. Até parece que você ia esperar o friozinho chegar, né? Conforto, sofisticação, riqueza, poder e um guarda-chuva irão lhe vestir muito bem se o Apocalipse Zumbi acontecer nessa estação. 

Espero que com essas dicas você possa vivenciar o dia Z com muita classe! Não deixe para escolher o que vestir na última hora, hein.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Funk Ostentação

Acho que existe algo no meu tom que faz com que eu soe muito arrogante e cretina (chata eu sou tanto quanto pareço ou mais), mas não consigo amenizar porque não sei identificar - juro! - onde possa estar a causa disso. De verdade, não me acho superior a ninguém.

Assim... até acho, porque toda pessoa que não é realmente superior acha isso de si mesma, ao menos um pouquinho, pelo menos algumas vezes na vida. Só mesmo os seres que estão num nível mais elevado, seres realmente iluminados, não possuem esse pensamento vaidoso e equivocado. Acredito que os demais seres humanos só dissimulam esse traço do nosso caráter.

O fato é que, não sei se pelo tom, interpretam tão mal o que digo que tenho o ímpeto de dividir as pessoas em dois tipos: as que concordam comigo e as que não compreenderam nada do que eu disse.

Deve ser algum talento latente pra compor Funk Ostentação, sei lá.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

'No território da arte, não há democracia', diz Ariano Suassuna

Entrevista feita pela Folha de São Paulo com o escritor Ariano Suassuna em 28/07/2012

MORRIS KACHANI DE SÃO PAULO


Folha - Quais são os dez maiores romances da literatura universal, em sua opinião?
Ariano Suassuna - O senhor está falando com um arcaico. O número de escritores bons e excepcionais é reduzido. Os dez são somente sete: "Dom Quixote", "Crime e Castigo", "O Idiota", "Os Demônios", "Os Irmãos Karamázov", "Guerra e Paz" e "Em Busca do Tempo Perdido".

O sr. acompanha a produção contemporânea?
Não, porque não gosto nem tenho tempo. Ainda não li a obra inteira de Dostoiévski --por que vou perder tempo com esses romancistas de segunda categoria? Não existe arte nova ou velha, só boa ou ruim. Para mim, o último grande romancista foi Proust.

O sr. usa computador?
Não sou contra computador, mas não quero usar. Escrevo à mão e eu mesmo ilustro as páginas dos meus livros. Não é por princípio, é por prazer, eu só sinto prazer de escrever à mão.

E a internet?
Nunca olhei a internet. A velocidade da comunicação não é coisa boa. Arte exige vagar e dedicação exclusiva. O que vou dizer vai talvez te deixar chocado, mas infelizmente, no território da arte, não existe democracia. Nem pode existir. Cervantes só existe um. Ninguém chega a ele através do computador.

O sr. está preparando um novo livro...
Sim, posso adiantar o título, "O Jumento Sedutor". É uma homenagem a "O Asno de Ouro", do escritor Lucius Apuleio, do século 2, uma obra que me toca muito. Mas eu escrevo e reescrevo, já dei por pronto tantas vezes que estou desmoralizado.

Qual a importância do sertão na sua obra?
Todo universo de um escritor se forma na infância e na adolescência. E tudo na minha obra se passa dentro dos valores, das histórias e dos personagens que conheci até os 20 anos. Sou um ladrão desgraçado, copio o que eu vejo ou então roubo (risos).

O sr. assiste a TV?
Assisto novela. Das seis, das sete e das oito. Acho melhor que qualquer enlatado americano.

E gosta?
Eu não disse que gosto, eu assisto. Acho que novela vai de razoável a péssimo. Essas três que estão no ar são razoáveis. Mas não gosto muito quando fazem humor, é muito sem graça. O que mais me irrita são as cenas rurais com música em inglês.

Que acha do enfoque das tramas na classe C?
O ser humano é o mesmo em qualquer lugar, em qualquer tempo, em qualquer que seja a sua condição. Você pode ser rico ou pobre, mas os problemas que afetam verdadeiramente o ser humano são os mesmos.

Como enxerga o crescimento evangélico?
Eu acho que os evangélicos são equivocados. Lutero tinha razão na maior parte do que dizia. Mas errou ao sair da igreja, porque reforma pra mim é o que São Francisco fez, sem sair da igreja. Veja no que deu a separação de Lutero. Não é à toa que para a ética protestante a riqueza é sinal de amor de Deus, da preferência de Deus. Isso justifica todo o capitalismo.

Como enxerga o Brasil atualmente?
Como sempre vi, com uma preocupação pela secular injustiça que existe, separando os privilegiados dos despossuídos. Tem uma história que ilustra isso, do compadre que procurou o psiquiatra. "Doutor, eu vim aqui por que tenho complexo de inferioridade". Daí o psiquiatra disse, "você não tem complexo não, você é inferior mesmo". É o que eu digo, o fato é preocupante mesmo.

E os escritores brasileiros?
Dos vivos aqui no Brasil eu destaco um grande que é Raduan Nassar. Gosto muito de "Lavoura Arcaica", mas de "Um copo de cólera" nem tanto. Raduan é meu amigo, ele foi lá no Sertão conhecer minha criação de cabra. E foi ótimo, um encontro de primeiríssima ordem.

Qual a importância da religião na sua vida?
A inteligência humana tem uma centelha divina. Coloco como um marco de minha vida quando li uma frase dos irmão Karamazov, em que Ivan diz assim, "se Deus não existe, tudo é permitido". Sartre tirou essa dúvida, porque a frase é duvidosa. Ele disse: "Deus não existe, portanto tudo é permitido". Eu tirei a conclusão contrária, eu digo que nem tudo é permitido e portanto Deus existe. Ou a norma moral tem um fundamento absoluto, ou ficaria ao sabor da opinião individual de todo mundo, inclusive de estupradores e assassinos. Foi Deus que disse "não matarás". Sou católico praticante.

Leia a íntegra da entrevista
folha.com/no1126704

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Trecho: O Grande Gatsby

" Em meus anos mais vulneráveis de juventude, meu pai me deu um conselho que jamais esqueci:

— Sempre que tiver vontade de criticar alguém — ele disse —, lembre-se de que ninguém teve as oportunidades que você teve.

Ele não falou mais nada, mas sempre fomos excepcionalmente comunicativos de uma forma contida, e entendi que ele queria dizer muito mais. Como consequência, adquiri o hábito de me abster de todos os julgamentos, um costume que me garantiu o acesso a diversas naturezas curiosas e também me fez vítima de alguns maçantes inveterados. A mente anormal detecta e se apega muito rapidamente a essa qualidade quando ela se manifesta em alguém normal, e por isso ocorreu de, na faculdade, me acusarem injustamente de ser um homem político, só porque eu guardava as angústias secretas de homens extravagantes e desconhecidos. A maioria das confidências era involuntária — quantas vezes fingi estar dormindo, preocupado com outras coisas ou levianamente hostil ao perceber, através de sinais inconfundíveis, que uma revelação íntima se desenhava no horizonte; pois as revelações íntimas dos jovens, ou pelo menos os termos que usam para expressá-las, costumam ser derivativas e deturpadas por supressões evidentes. Abster-se de julgamentos é questão de esperança infinita. Até hoje evito cometer grandes equívocos lembrando, como meu pai orgulhosamente sugeriu e eu orgulhosamente repito, que o senso fundamental de decência é distribuído de forma desigual no nascimento.

E, após gabar-me assim da minha tolerância, devo confessar que ela tem limites. Um comportamento pode ser edificado na pedra ou nos pântanos mais lamacentos, mas a partir de certo ponto eu não me importo mais. Quando retornei do Leste no último outono, desejei que o mundo estivesse uniforme e em estado constante de vigilância moral; não queria mais saber de jornadas desenfreadas atrás de vislumbres privilegiados do coração humano. Apenas Gatsby, o homem que dá nome a este livro, se achava isento dessa minha reação — Gatsby, que representava tudo aquilo que me causava genuíno desprezo. Se a personalidade é uma série contínua de gestos bem-sucedidos, então havia algo de grandioso naquele homem, certa sensibilidade exaltada às promessas da vida, como se ele guardasse alguma relação com aquelas máquinas intrincadas que registram terremotos a quilômetros de distância. Essa receptividade nada tinha a ver com a frouxa vulnerabilidade que muitos qualificam de “temperamento criativo” — era um talento extraordinário para a esperança, uma prontidão romântica tal como nunca encontrei em ninguém e dificilmente tornarei a encontrar. Não — Gatsby saiu-se bem no final; é aquilo que estava à espreita em Gatsby, a espécie de poeira imunda que flutuava na superfície de seus sonhos, que matou temporariamente meu interesse pelas tristezas inúteis e pelas alegrias fugazes dos homens."

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Trecho: À Sombra das Raparigas em Flor


 "Um mundo novo que não subsistisse nada do antigo, nada... a não ser uma coisa: gue Gilbert me amasse. Compreendi que se meu coração ansiava que em torno dela se renovasse aquele universo que não o satisfizera, era porque ele, meu coração, não havia mudado, e pensei que tampouco havia motivo para que tivesse mudado o de Gilbert; que aquela amizade era a mesma de antes, como acontece com os anos novos, que não estão separados dos outros por um fosso e que o nosso desejo, impotente para chegar até as suas entranhas e modificá-los, reveste, sem que eles o saibam, de um nome diferente. De nada servia que eu dedicasse a Gilbert aquele que começava e, como se superpõe uma religião às leis cegas na natureza, tentasse imprimir ao primeiro do ano a ideia particular que formava a seu respeito; tudo em vão; senti que ele não sabia que o chamávamos o dia do ano novo, que ele expirava no acaso de um modo que não era novo para mim; e no vento suave que soprava em torno do mostrador, vi reaparecer a matéria eterna e comum, a umidade familiar, o inconsciente fluir dos dias de sempre."