quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Salinger te odeia

Seria absurdo afirmar que a atração pela poesia da maior parte dos jovens é de muito excedida por sua atração pelos detalhes da vida do poeta, abundantes ou não, que poderiam ser aqui definidos, sem rigor técnico, como escabrosos. Mas esse é o tipo de ideia absurda que, um dia, eu talvez venha a testar cientificamente. De qualquer modo, tenho a mais absoluta certeza de que, se pedisse às sessenta tantãs (ou melhor, às sessenta e tantas moças) que compõem minhas duas turmas de Literatura para Publicação – a maioria no último ano da universidade, todas se formando em Língua Inglesa – para citarem uma linha, qualquer linha, do ‘Ozymandias’, ou pelo menos para dizerem do que se trata o poema, duvido que dez delas pudessem fazer uma coisa ou outra; mas apostaria minhas recém-plantadas tulipas que umas cinquenta seriam capazes de me dizer que Shelley era inteiramente favorável ao amor livre, que uma de suas mulheres escreveu Frankenstein e que a outra se suicidou por afogamento. (Trecho de Seymour, Uma Introdução)
Jerome David Salinger detestava o culto ao escritor. Embora leitores sejam apaixonados por ficção, seres humanos possuem um fetiche incorrigível pela realidade. Como se a própria linguagem não bastasse, buscamos iluminar a arte com a biografia do artista. Opção altamente discutível – mas tentadora, admito. A verdade é que não passamos de bisbilhoteiros, mas desculpamos nossa curiosidade alegando que temos motivos nobres.

Depois de publicar O Apanhador no Campo de Centeio, em 1951, seu livro de maior sucesso, Salinger se tornou um recluso. Nada de entrevistas ou aparições públicas. Depois de 1964, ele não publicou mais nada e passou o resto da vida, até morrer em 2010, escrevendo só para si mesmo. Frescura? Transtorno de personalidade esquiva? Vaidade? Ciúmes de dividir o xixi que supostamente bebia? São tantas as especulações! Ele não queria que seus livros tivessem ilustração, foto do autor, biografia, listagem de outras obras e ou cartazes de lançamento. Mas até mesmo nisso alguns enxergam algum tipo de marketing, quando ele queria que seus livros fossem lidos pelo que são, apenas isso.
Juro por Deus que, se eu fosse um pianista, ou um autor, ou coisa que o valha, e todos aqueles bobalhões me achassem fabuloso, ia ter raiva de viver. Não ia querer nem que me aplaudissem. As pessoas sempre batem palmas pelas coisas erradas. Se eu fosse pianista, ia tocar dentro de um armário. Seja como for, na hora que ele acabou e todo mundo estava aplaudindo como uns alucinados, o safado do Ernie deu uma volta no banquinho e fez uma reverência fingida, bancando o humilde. Como se, além de ser um pianista bom pra burro, fosse também um sujeito um bocado humilde. Era um troço cretino pra diabo aquilo dele ser metido a besta e tudo. Maes, de um jeito meio engraçado, senti pena dele quando acabou a música. Acho que ele nem sabe mais quando está tocando bem ou não. A culpa não é toda dele. Em parte, os culpados são aqueles bobalhões que batem palmas como uns alucinados: eles são capazes de enganar qualquer um, se tiverem uma chance. (Trecho de O Apanhador no Campo de Centeio)
Infelizmente o Apanhador não é famoso apenas por méritos literários.  Acusam-no de terem “inspirado psicopatas”, outras vezes o elogiam como se fosse um tipo de “manual do jovem desajustado” e até mesmo caem naquele velho e óbvio lugar comum: “critica a burguesia”. Não, ele não critica a burguesia.

O-Apanhador-no-Campo-de-CenteioO Apanhador no Campo de Centeio é uma narrativa bastante coloquial e aparentemente prolixa da perambulação do protagonista em Nova York por alguns dias, adiando a volta para a casa e o confronto com a família, já que foi expulso da escola. Mas não é um livro pra adolescentes, a menos que o adolescente em questão seja um leitor maduro. Holden Calfield é um garoto de dezessete anos, imaturo em diversos aspectos e é o narrador da história, mas ser um adolescente problemático não é pré-requisito para apreciar o livro. A aparente leveza e espontaneidade da narrativa é fruto de muito trabalho. Diferente dos beats, que em Seymour, Uma Introdução, Salinger critica por – entre outras coisas - serem “assassinos do zen budismo”, o autor transforma o turbilhão de sensibilidade imberbe do protagonista em literatura do mais alto nível. Há milhares de pensamentos incríveis atravessando a mente de Holden, mas ele não se sente disposto o suficiente pra explicar, nem o péssimo vocabulário dele poderia. Mas estão sugeridos por toda a história, e é preciso muita maturidade e competência cognitiva da parte do leitor para sejam assimilados.

Especular a vida do autor não irá nos dar um conhecimento mais amplo da sua obra, mas agrada muito a Miss Spiritual Tramp of 1948 que existe dentro de cada um de nós. O mais engraçado – a ironia do troço todo – é que Holden diz que livro bom é aquele que, quando você termina, sente vontade de ligar pro autor e poder conversar horas a fio com ele. Salinger disse para todos lhe telefonarem e depois cancelou a linha.

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