quinta-feira, 23 de abril de 2015

Flexibilidade moral


Wuthering Heights, ou como foi traduzido no Brasil, O morro dos Ventos Uivantes, é o único romance escrito por Emily Brontë. Com uma prosa sarcástica e repleta de diálogos – digamos -, pouco adequados para uma moça solteira e luterana do século XIX, ela nos leva para um lugar isolado do resto do mundo; rústico, original e fustigado pelo vento. O poeta Dante Gabriel Rossetti afirmou que a ação se passa no inferno, só que os lugares e as pessoas têm nomes ingleses. A definição faz justiça. Charlotte Brontë, numa tentativa de explicar aos leitores da época toda a estranheza e originalidade do gênio da irmã, escreveu:
Para todas essas pessoas, O Wuthering Heights deve parecer um livro rude e esquisito. As bravias charnecas do norte da Inglaterra não podem ter, para elas, qualquer interesse; a linguagem, as maneiras, as próprias moradas e os usos domésticos dos poucos habitantes dessas regiões devem ser, para tais leitores, em grande parte ininteligíveis e — quando inteligíveis — repulsivos. Homens e mulheres que, talvez por natureza muito calmos, com sentimentos moderados e pouco marcados, tenham sido desde o berço ensinados a observar a mais completa temperança de maneiras e o mais perfeito policiamento de linguagem sem dúvida não saberão como encarar o linguajar forte, as paixões brutalmente manifestadas, as aversões não contidas e as obstinadas parcialidades dos camponeses iletrados e dos fidalgos não refinados que vivem nessa região, e que se criaram sem outros ensinamentos e outras contenções que os de mentores tão rudes quanto eles próprios.
Considerado hoje uma obra prima da literatura inglesa, foi publicado pela primeira vez em 1847 sob o pseudônimo masculino de Ellis Bell, e provocou reações controversas com sua narrativa crua e minuciosa dos mais diversos tipos de violência mental e física. Criança, mulher, cachorro: apanha todo mundo. E quem não apanha é mandado pro inferno. Aliás, acho que não tem uma página sem que o diabo não seja invocado ao menos uma vez. Talvez O Morro dos Ventos Uivantes seja meu livro favorito. Apesar de ver inúmeras críticas a respeito da morbidade da história, o livro me faz bastante feliz. Um exemplar dele está sempre na cabeceira da minha cama, e diria que ele me traz até uma certa paz de espírito. É minha bíblia (eufemismo para obsessão). Admito que parece contraditório dizer isso, já que não sou nenhuma psicopata. Mas por trás de todo o turbilhão de angústias, vingança, egoísmo, praga e maldições, se o leitor descobrir o que sobrevive a todo esse choro e ranger de dentes, ficará encantado!
por Kate Beaton

Tudo começa quando o Sr. Lockwood aluga a Granja Thrushcross, propriedade vizinha a Wuthering Heights, em busca de isolamento. Quando ele resolve se apresentar a Heahtcliff, dono das duas propriedades, se depara com um homem cuja misantropia é ainda maior que a sua. A curiosidade pelo vizinho o leva a interrogar a governanta, Nelly Dean, que conhece Heathcliff desde a infância. No final do século XVIII, em uma área rural da Inglaterra, o patriarca da família Earnshaw retorna de uma viagem trazendo consigo um pequeno órfão de origem obscura, que todos pensam ser um cigano, e a qual dão o nome de Heathcliff. A afeição que o Sr. Earnshaw tem pelo menino deixa Hindley, seu filho legítimo, profundamente enciumado enquanto a caçula, Catherine, desenvolve com ele uma grande cumplicidade. Quando o Sr. e a Sra. Earnshaw morrem, Hindley sujeita Heathcliff a várias humilhações; e ele, que vinha até então sendo tratado como um filho legítimo, se vê numa situação pior que a dos empregados. Mas o golpe mais duro vem por parte de sua adorada: Catherine decide se casar com Edgar Linton, um rico jovem das redondezas. Heathcliff então foge. E retorna anos depois com uma grande fortuna e uma disposição demoníaca para se vingar de todos.


O Morro dos Ventos Uivantes é de uma obra de grandiosidade solitária, surgida de uma experiência de vida que causa perplexidade. Emily Brontë é a mais genial dentre as irmãs Brontë, também escritoras. Ficava doente de saudade longe de casa e era quase uma reclusa, só saía para ir à igreja e passear solitária pelas charnecas, paisagem pelo qual era apaixonada e na qual ela situou sua narrativa. O seu profundo conhecimento da alma humana parece ter nascido de uma intuição quase selvagem. Ela desenvolveu uma Gnose original, uma religião inteiramente sua. Por toda a história ela se recusa unir os dois universos do seu romance: razão, natureza e sociedade constituem um mundo; o sobrenatural, transcendente e fantasmagórico é outro. O livro apresenta fatos sobrenaturais com uma evidência perturbadora. Enquanto o leitor fica num impasse, travando uma verdadeira batalha entre esses dois universos, Emily, com sua narrativa esplêndida, parece rir:

(Heathcliff) Subiu na cama e abriu a gelosia, explodindo, ao fazê-lo, numa incontrolável torrente de lágrimas. – Entre! Entre! soluçou. – Cathy, entre! Oh, venha… venha… uma vez mais! Oh, minha adorada! Escute-me agora, Catherine, finalmente! – o espectro mostrou um capricho bem digno dos espectros: não deu sinais de vidas; mas a neve e o vento entraram à vontade, chegando até onde eu estava e apagando a luz.

A história desafia qualquer ser humano com o mínimo senso de civilidade. Civilidade que muitas das vezes usamos como desculpa para explicar os sentimentos insossos e sem convicção que predominam. A propriedade de Wuthering Heights, no topo do morro, sujeita as mais fortes tempestades, é a metáfora estética para definir sentimentos não domesticáveis de uma classe praticamente extinta de seres humanos. É uma tarefa ingrata julgar seus personagens, dificilmente teríamos a profundidade emocional necessária. O que nos resta é esquecer de tudo que consideramos como correto, ético e moral, e simplesmente absorver que ali, naquela situação, forças maiores estão envolvidas. Sentimentos que nos arrebentariam por dentro.

E você supõe que ela me haja quase esquecido? Oh, Nelly! Sabe muito bem que isso não é verdade! Sabe, tão bem quanto eu, que por um pensamento que ela gasta com Linton, gasta mil comigo! No período mais desgraçado da minha vida assaltava-me esse medo: medo que me acompanhou quando vim para cá, no verão passado. Agora, só a palavra dela pode me fazer admitir de novo essa horrorosa ideia. E então Linton já não representaria mais nada, nem Hindley, nem todos os sonhos que eu já sonhei. Duas únicas palavras seriam a suma do meu futuro: morte e inferno. A vida, depois de a perder, seria o inferno. E, assim mesmo, andei tão louco que cheguei a crer que ela dava mais valor ao amor de Linton do que ao meu. Mesmo que ele a amasse com todas as forças do seu mesquinho corpo, nem em oitenta anos a amaria tanto quanto eu a amo em um dia. E Catherine tem um coração tão profundo quanto o meu; seria mais fácil o mar caber todo nessa vasilha do que todo o amor dela ser monopolizado por ele! Ora! Ela mal lhe quer um pouco mais do que a seu cão, ou a seu cavalo! Não está na mão dele ser amado como eu sou; e como poderia ela amar o que ele não possui?

Não é apropriado considerar o amor entre Heathcliff e Catherine doentio. Mais uma vez: precisamos nos abster de todos os conceitos que temos, para compreender que o que se passa entre eles é grandioso demais! É curioso como não há contato carnal entre os dois. Acho que o mais chocante na época que o livro foi publicado era pensar que, de certa maneira, eles eram irmãos. Acho que eles não estavam muito preocupados com a natureza dos seus sentimentos. Era tão sublime! Quando crianças, ficavam brincando pela charneca quando conseguiam fugir dos castigos de Hindley e isso era o sinônimo de felicidade para eles. Selvagens, livres. Não só das amarras do mundo físico, mas de qualquer ambição vaidosa. Há um trecho que ilustra bem o fato de como a ideia de ter inveja de Catherine era até mesmo incompreensível para Heathcliff:

Edgar e a irmã eram donos de toda a sala. Como é que não estariam felizes? Se fôssemos nós, pensaríamos que estávamos no céu! E agora diga: – que é que você pensa que aqueles meninos bonzinhos estavam fazendo? Isabella – creio que tem onze anos, é um ano mais moça que Cathy – estava estirada no chão, no fundo da sala, gritando como se um bando de bruxas a alfinetasse com agulhas em brasa. E Edgar, de pé, junto ao fogão, chorava em silêncio; no meio da mesa estava um cachorrinho, balançando a pata e ganindo. E, pelas acusações que os dois faziam entre si, compreendemos que tinham quase despedaçado o bichinho. Idiotas! Assim é que se divertiam! Brigando para ver quem segurava aquela trouxa de pêlo quente e, depois da briga, choravam porque nenhum dos dois queria mais pegar o cão. Cathy e eu caímos na gargalhada, vendo aqueles dois enjoados; davam até desprezo. Você já me apanhou algum dia cobiçando alguma coisa que Catherine desejasse? Ou acha que nos encontraria sozinhos, brincando de chorar, soluçar e rolar no chão, cada qual a um lado da sala? Olhe, nem por mil libras eu trocaria minha situação aqui pela de Edgar Linton, em Thrushcross Grange. Nem que me deixassem atirar Joseph da cumeeira abaixo ou pintar a porta da rua com o sangue de Hindley!

A violência que transborda de algumas páginas é repulsiva. Facada em mulher, maus tratos contra crianças… Talvez o aspecto mais sombrio de toda a obra seja a crueldade contra animais. Emily Brontë tinha uma relação muito diferente com eles. É conhecido que um Mastiff de nome Keeper foi seu fiel companheiro. Outros animais da família eram mencionados por cartas trocadas com as irmãs e é evidente que eram bastante considerados. Por isso mesmo, é surreal a neutralidade com que ela narra o enforcamento de um cachorro na história. Grande conhecimento ela tinha do lado escuro do vínculo entre homem e cão, que é, muitas das vezes, usado como bode expiatório. O que mais choca é saber que o cão enforcado, ao sobreviver, permanece fiel a dona que o abandonou. Lealdade para com o autor dos abusos é uma poderosa dinâmica em situações de violência doméstica. O cão em Wuthering Heights nem sempre é maltratado de maneira consciente, há também o desdém, ou a ingênua -mas não menos grotesca - crueldade que crianças podem cometer contra animais. O comportamento abusivo é igualmente exercido sobre mulheres e crianças, e Emily retrata essas situações com a mesma naturalidade que uma pessoa completamente desprovida de aversão a tais coisas faria. Sentimos a boca amargar, mas é fascinante mergulhar nas complexas relações de opressão e servilismo que caracterizam o abuso de poder.

É necessária uma grande dose de flexibilidade moral para nos aproximarmos de Heathcliff e Catherine e deixar que suas qualidades, que são tão grandes quanto seus defeitos, os tornem pessoas admiráveis aos nossos olhos. Gosto sobretudo de Catherine, que a despeito de todo o seu egoísmo e gênio manipulador, era uma pessoa com afetos sinceros e duráveis. Não havia nada de volúvel e leviano nela. Sinceramente acredito que quando se casou com Edgar realmente acreditava que isso permitiria que sua relação com Heathcliff continuasse a ser a mesma de sempre. Apesar de toda a tirania de Hindley e os castigos infligidos por Joseph, o caseiro detestável e hipócrita, as duas crianças nunca se lamentaram muito conquanto tivessem um ao outro. Eram tão felizes naquela propriedade desgraçada que um dia Catherine sonhou que estava no paraíso, mas não era feliz, e chorou até que os anjos a jogassem de volta ao Morro. Heathcliff é um personagem tão assombroso e implacável que quase chegamos a acreditar que não é filho de cigano, mas do demônio. O único sentimento humano que revela não é seu amor por Catherine, porque como ele mesmo diz, ela é sua própria alma. O elo que verdadeiramente liga Heathcliff à humanidade é sua inconfessada preocupação com Hareton – o filho de Hindley que ele arruinou para se vingar do pai – e uma insinuada estima por Nelly.


A sabedoria de Emily Brontë é ainda mais incrível quando ela leva a filha de Catherine e o filho de Heathcliff a discutirem sobre como deveria ser o Paraíso. Acho que essa é a chave para imergir na complexidade da obra, na tempestade de sentimentos contraditórios, na felicidade descoberta nos lugares mais improváveis. Ninguém imagina ser infeliz no Paraíso.

Um dia, porém, estivemos a ponto de brigar. Ele dizia que a maneira mais agradável de passar um dia quente de julho era ficar deitado, desde a manhã até a noite, sobre um talude de urzes em meio da charneca, a escutar, como num sonho, o zumbir das abelhas sobre as flores, o canto das cotovias que planam bem alto acima de nossas cabeças e a contemplar o céu azul e o sol a esplender, límpido e refulgente. Tal era a sua mais perfeita ideia da felicidade celeste. A minha era balançar-me numa árvore de verde folhagem murmurante, quando sopra um vento de oeste e belas nuvens brancas deslizam rapidamente pelo espaço. E não apenas quando cotovias, mas também tordos, melros, pintarroxos e cucos esparzem por todos os lados sua música; quando se avista a charneca de longe, cortada de frescos vales mergulhados na sombra; e, bem perto, grandes outeiros cobertos de grama alta, ondulando como vagas ao sopro da brisa; bosques e água tumultuosa, o mundo inteiro em movimento e fremente de alegria. Ele gostaria de ver tudo repousar em um êxtase de paz. Eu de ver tudo cintilar e dançar num glorioso jubileu. Disse que seu paraíso seria semimorto. Ele dizia que o meu seria ébrio. Disse que dormiria no dele. Ele dizia que não poderia respirar no meu. A discussão começava a se tornar mordaz. Afinal, convimos que faríamos a experiência dos dois, logo que o tempo fosse favorável. Depois nos beijamos e voltamos a ser amigos.

Heathcliff rejeita todas as tentativas de Nelly de fazê-lo confessar seus pecados. O Paraíso que Nelly acreditava, como cristã, não comportaria Heathcliff. Ela nunca nem questionou que isso, de forma alguma, seria um desejo dele. Ele afirma pra ela que já encontrou o seu próprio céu. Da sensata governanta é feita a pergunta mais heterodoxa de toda a história. Ao ver Catherine morrer em paz, depois da vida agitada e impaciente que levou, ela pergunta ao Sr. Lockwood se ele acredita que pessoas como Catherine sejam felizes no “outro mundo”, e que daria tudo para sabe-lo. Ela chega a conclusão de que só num momento de fria reflexão a resposta seria não.


Defendo Heathcliff e Catherine, me comovo com suas motivações e perdoo cada uma de suas atrocidades. Espero que o texto tenha lançado uma luz sobre as trevas que cobriram o coração deles. Desde sempre, a única coisa que desejavam, eram ser selvagens e livres. Liberdade que as convenções vitorianas não permitiram. Convenções que são defendidas, geralmente, por gente boazinha, leviana, descuidada, que não faz o mal de propósito, mas simplesmente se apropria de valores abstratos na falta de causas superiores e sentimentos sinceros.

O leitor estúpido: Mary Bennet em Orgulho e Preconceito

- Diz preferir ler a jogar?- disse Mr. Hust – Que coisa estranha.
- Miss Elizabeth Bennet – disse Miss Bingley – tem desprezo pelas cartas. Ela é uma grande leitora, e, para além disso, nada lhe dá prazer.
- Não mereço nem tal louvor nem tal censura – exclamou Elizabeth -; não sou uma grande leitora, e são muitas coisas que me dão prazer.
O leitor estúpido é como qualquer outra pessoa estúpida. A diferença é que ele pensa que livros necessariamente o salvam de tal condição.

Em Orgulho e Preconceito, Jane Austen retrata dois tipos de leitores. Primeiro temos a heroína da história, Elizabeth Bennet. Sagaz, espirituosa e irônica, Lizzie (como irei chamá-la daqui pra frente) gosta muito de ler. Mas ela, como pessoa inteligente que é, reconhece que não há sentido em ficar imersa nos livros todo o tempo, e por isso também vai a bailes, fofoca com a irmã e a melhor amiga, entre outros passatempos inofensivos, que dificilmente diminuirão seu intelecto.

Lizzie poderia ler mais, citar autores importantes a cada conversa cotidiana e deixar de lado todas as “frivolidades”. No entanto, ela prefere viver sua vida e ter sua própria carga de sabedoria, que é bagagem extremamente necessária para aventurarmos em qualquer leitura e absorver seu conteúdo. É uma leitora consciente e esperta, capaz de interpretar textos através de seu filtro pessoal. Ela é tão inteligente que até gosta de ler livros! Nunca o contrário. Já o segundo caso…
- Qual a tua opinião, Mary? Tu, que és jovem sensata e profunda, que lês bons livros e deles extrais ensinamentos. Mary quis dizer algo de relevante, mas não sabia como.
Mary Bennet é tudo o que Lizzie não é. Mary lê vorazmente. Desdenha dos interesses das irmãs, das futilidades da vida e de qualquer conversa sobre banalidades.  Ela acredita que livros são uma fonte inesgotável de conhecimento.
- Longe de mim menosprezar tais prazeres, minha querida irmã; são os que sem dúvida se enquadram mais naturalmente nos temperamentos femininos. Mas confesso que não me seduzem. Prefiro infinitamente mais um bom livro.
 Na personagem de Mary, Jane Austen faz uma crítica deliciosa e bem humorada a respeito da leitura e da receptividade da mesma por parte do leitor. Ela demonstra que não há qualquer benefício no apreço demasiadamente excessivo que Mary tem pelo hábito da leitura. Quando não está lendo e fazendo reflexões “profundas” a respeito dos livros, Mary também se dedica a outras atividades “superiores”, como tocar piano.
A atuação de Elizabeth foi agradável, embora de modo algum excelente. Depois de uma canção ou duas, e antes que pudesse responder à insistência das várias pessoas para ela cantar de novo, o lugar ao piano foi avidamente ocupado pela sua irmã Mary, que, em consequência da sua fealdade, se aplicara na árdua aquisição de conhecimentos e dotes, vivendo na ânsia constante de os exibir. Mary não tinha nem talento nem gosto; e, embora a vaidade lhe tivesse dado aplicação, emprestara-lhe também um tal ar de superioridade e afetação nos modos que por si só prejudicariam um grau de perfeição mais elevado que o que ela atingira; Elizabeth, que não tocava tanto como a irmã, prendera muito mais a atenção.
 Seja tocando piano ou dando lições moralizantes, Mary falha em perceber que todos os seusesforços não a tornaram tão sapiente quanto se imagina. A leitura exagerada e o desprezo por atividades menos eruditas não a dotaram do senso crítico que só podemos adquirir através da convivência com outros seres humanos.

Aliás, livros são, geralmente, sobre SPOILER eles (explicando aqui, para o caso de um desses leitores fervorosos ainda não terem atentado para o fato). Isolada em sua ilha de erudição, Mary, ao contrário, aumenta cada vez mais sua estagnação intelectual. O que ela compreende de suas leituras, quando compreende, não acrescenta nada para si mesma. Está tão convencida de sua superioridade que até mesmo as reflexões originais que faz só servem para serem aplicadas aos outros. Nunca passou pela sua mente aguçada que, assim como todos os meros e fúteis mortais aos quais dá lições, ela também carece, muitas das vezes, de uma dose nada comedida de autocrítica.
- O orgulho – observou Mary, que se vangloriava da solidez das suas reflexões – é um defeito muito vulgar, creio eu. Depois de tudo o que li, estou deveras convencida da sua vulgaridade, que a natureza humana lhe é particularmente propensa e que são raros aqueles entre nós que não nutrem um sentimento de condescendência própria baseado numa ou outra qualidade, real ou imaginária. Vaidade e orgulho são coisas diferentes, embora as palavras sejam frequentemente usadas como sinônimos. Pode-se sentir orgulho sem ser vaidoso. O orgulho diz respeito mais à opinião que temos de nós próprios, enquanto a vaidade ao que pretendemos que os outros pensem de nós.
 Ah, como seria glorioso se Mary Bennet falasse umas abobrinhas de vez em quando! Jane Austen, nos tempos de hoje, recomendaria mais balada e menos biblioteca pra essa moça.