segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Trecho: À Sombra das Raparigas em Flor


 "Um mundo novo que não subsistisse nada do antigo, nada... a não ser uma coisa: gue Gilbert me amasse. Compreendi que se meu coração ansiava que em torno dela se renovasse aquele universo que não o satisfizera, era porque ele, meu coração, não havia mudado, e pensei que tampouco havia motivo para que tivesse mudado o de Gilbert; que aquela amizade era a mesma de antes, como acontece com os anos novos, que não estão separados dos outros por um fosso e que o nosso desejo, impotente para chegar até as suas entranhas e modificá-los, reveste, sem que eles o saibam, de um nome diferente. De nada servia que eu dedicasse a Gilbert aquele que começava e, como se superpõe uma religião às leis cegas na natureza, tentasse imprimir ao primeiro do ano a ideia particular que formava a seu respeito; tudo em vão; senti que ele não sabia que o chamávamos o dia do ano novo, que ele expirava no acaso de um modo que não era novo para mim; e no vento suave que soprava em torno do mostrador, vi reaparecer a matéria eterna e comum, a umidade familiar, o inconsciente fluir dos dias de sempre."

Trecho: No Caminho de Swann

"A realidade que eu conhecera não mais existia. Bastava que a sra. Swann não chegasse exatamente igual e no mesmo momento que antes para que a Avenida fosse outra. Os lugares que conhecemos não pertecem tampouco ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade. Não eram mais que uma delgada fatia no meio de impressões contíguas que formavam a nossa vida de então; a recordação de certa imagem não é senão saudade de certo instante; e as casas, os caminhos, as avenidas são fugitivos, infelizmente, como os anos."

Trecho: No Caminho de Swann

"Até então, como em muitos homens cujo gosto pelas artes se aprofunda independentemente da sensualidade, existira uma estranha disparidade entre as satisfações que ele atribuira a uma coisa e outra; desfrutando da companhia de mulheres cada vez mais rudes, a sedução de obras cada vez mais requintadas; por exemplo, levando uma empregadinha para um camarote reservado para assistir à representação de uma peça decadentista, que tinha vontade de ir a uma exposição de pintura impressionista, convencido, aliás, que uma da sociedade intelectualizada não entenderia muito mais do que a criada, mas não teria sabido ficar calada com tanta gentileza."

Trecho: No Caminho de Swann

"Dentre os que apreciavam objetos de arte, que amavam os versos, contabilizavam os cálculos vis, sonhavam com a honra e o amor, ela formava uma minoria superior ao restante da humanidade. Não era preciso que tivessem de fato aqueles gostos, desde que os afirmassem; de um homem que lhe confessara, no jantar, que gostava de andar à toa, de sujar os dedos nas velhas lojas, que nunca seria apreciado por este século mercantil, pois não se preocupava com os interesses desta época e portanto, pertencia a outro tempo, dizia ela ao voltar: "É uma alma adorável, uma pessoa sensível, eu não tinha desconfiado disso!" e sentia por ele uma imensa e repentina amizade. Mas em compensação, aqueles que, como Swann, tinham tais gostos mas não os externavam, deixavam-na indiferente. Certo, era forçada a confessar que Swann não ligava para o dinheiro, mas acrescentava com ar entediado: "Mas no caso dele, é outra coisa"; e, de fato, o que falava à sua imaginação não era a prática do desinteresse, e sim o seu vocabulário."

Trecho: No Caminho de Swann

"Mas é principalmente como se pensasse em jazidas perfumadas do meu solo mental, como no terreno firme a que ainda me apóio, que devo eu pensar no lado de Méséglise e no lado de Guermantes. E exatamente porque eu acreditava nas coisas, nos seres, quando percorria aqueles caminhos, é que as coisas e os seres que eles me deram a conhecer são os únicos que ainda tomo a sério e ainda me proporcionam alegria. Ou porque a fé que cria se haja estancado em mim, ou porque a realidade só se forme na memória, as flores que hoje me mostram pela primeira vez não me parecem de verdade."

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Trecho: No Caminho de Swann



"Depois dessa crença central que, durante a leitura, executava incessantes movimentos de dentro para fora, em busca da verdade, vinham as emoções que proporcionava a ação em que eu tomava parte, pois aquelas tardes eram mais povoadas de acontecimentos dramáticos do que, muitas vezes, uma vida inteira. Esses acontecimentos eram os que sucediam no livro que eu lia; na verdade, os personagens a quem afetavam não eram "reais", como dizia Françoise. Mas todos os sentimentos que nos fazem experimentar a alegria ou o infortúnio de um personagem real só se produzem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria ou desse infortúnio; todo o engenho do primeiro romancista consistiu em compreender que, sendo a imagem o único elemento essencial da estrutura das nossas emoções, a simplificação que consistisse em suprimir pura e simplesmente os personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por mais profundamente que simpatizemos com ele percebemo-lo em grande parte por meio de nossos sentidos, isto é, continua opaco para nós, oferece um peso morto que nossa sensibilidade não pode levantar. Se lhe sucede uma desgraça, esta só nos pode comover numa pequena parte da noção total que temos dele, e ainda mais, só numa pequena parte da noção total que ele tem de si mesmo é que a sua própria desgraça o poderá comover. O achado do romancista consistiu na ideia de substituir essas partes impenetráveis à alma por uma quantidade igual de partes imateriais, isto é, que nossa alma pode assimilar. Desde esse momento, já não importa que as ações e emoções desses indivíduos de uma nova espécie nos apareçam como verdadeiras, visto que as fizemos nossas, que é em nós que elas se realizam e mantêm sob o seu domínio, enquanto viramos febrilmente as páginas, o ritmo de nossa respiração e a intensidade de nosso olhar. E uma vez que o romancista nos pôs nesse estado, no qual, como em todos os estados puramente interiores, cada emoção é duplicada, e em onde seu livro nos vai agitar como um sonho, mas um sonho mais claro do que aqueles que sonhamos a dormir e cuja lembrança vai durar mais tempo, eis que então ele desencadeia em nós, durante uma hora, todas as venturas e todas as desgraças possíveis, algumas das quais levaríamos anos para conhecer na vida, e outras, as mais intensas dentre elas, jamais nos seriam relevadas, pois a lentidão com que se processam nos impede de percebê-las (assim muda o nosso coração, na vida, e esta é a mais amarga das dores; mas é uma dor que só conhecemos pela leitura, em imaginação; porque na realidade o coração se nos transforma do mesmo modo por que se produzem certos fenômenos da natureza, isto é, com tamanho vagar que, embora possamos ver cada um de seus diferentes estados sucessivos, por outro lado escapa-nos a própria sensação de mudança)."

Trecho: No Caminho de Swann

"Até em Paris, num dos bairros mais feios da cidade, conheço uma janela de onde se vê, depois de um primeiro, um segundo e até um terceiro plano composto de telhados amontoados de ruas diversas, um campanário cor-de-violeta, às vezes avermelhado, às vezes ainda, nas melhores "provas" que lhe tira a atmosfera, de um negro decantado de cinzas, e que não é outro senão o zimbório de Saint Augustin e que dá a essa rua de Paris a característica de certas vistas de Roma, feitas por Piranesi. Mas como a memória, por mais gosto que tivesse em reproduzi-las, não conseguisse pôr em nenhuma dessas pequenas gravuras aquilo que eu há muito havia perdido, o sentimento que nos faz não considerar uma coisa como um espetáculo, mas a julgá-la um ser sem equivalente, nenhuma delas impõe-se a mim, sobre uma parte profunda da minha vida, como ocorre com a lembrança desses aspectos do campanário de Combray nas ruas que ficam por trás da igreja. (...) E ainda hoje se, numa grande cidade provinciana ou em um bairro parisiense que eu mal conheça, um transeunte que "me mostra o caminho" me aponta ao longe, como ponto de referência, uma torre de hospital, um campanário de convento que ergue a ponta de sua torre eclesiástica na esquina de uma rua pela qual devo seguir, por pouco que minha memória possa, de modo obscuro, achar nele algum traço semelhante à figura amada e desaparecida, o transeunte, se se vira para se assegurar que não vou me perder, pode, para seu espanto, dar comigo, esquecido do passeio projetado ou do caminho a trilhar, ali parado, diante do campanário, durante horas, imóvel, tentando lembrar-me, sentindo, no fundo de mim, terras reconquistadas ao esquecimento, que vão secando e se delineando; e nesse momento, sem dúvida, e com mais ansiedade que há pouco, quando lhe pedia que me orientasse, procuro ainda o meu caminho, dobro uma rua... mas... dentro do meu coração."

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Trecho: No Caminho de Swann

 
"E logo que reconheci o gosto do pedaço da madeleine mergulhado no chá que me dava minha tia (embora não soubesse ainda e devesse deixar para bem mais tarde a descoberta de porque essa lembrança me fazia tão feliz), logo a velha casa cinzenta que dava para a rua, onde estava o quarto dela, veio como um cenário de teatro se colar ao pequeno pavilhão, que dava para o jardim, construído pela família nos fundos (o lanço truncado que era o único que recordara até então); e com a casa, a cidade, da manhã à noite e em todos os tempos, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas aonde eu ia correr, os caminhos por onde se passeava quando fazia bom tempo. E como nesse jogo em que os japoneses se divertem mergulhando numa bacia de porcelana cheia de água pequeninos pedaços de papel até então indistintos que, mal são mergulhados, se estiram, se contorcem, se colorem, se diferenciam, tornando-se flores, casas, pessoas consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências, e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá."

Andando em círculos



Eu acredito que a relação superficial/profundo é muito parecida com a relação leste/oeste: quanto mais você se move em direção a um deles, mais perto você está de dar a volta completa e chegar ao outro.